10 de junho de 2022

CoviDEUS




Capa da Graphic Novel "Moonshadow" (1991), narra a história do personagem-título, filho de uma mulher atípica e um GL-Dose, ser de poderes ilimitados que parece basear suas ações em mero capricho, destruindo mundos ou fazendo-os prosperar. Tais seres mantém também um "zoológico" espacial, com espécies de todo o universo. Fonte: https://pipocaenanquim.com.br/



Corremos tanto que nos acostumamos. Passamos a achar normal comer andando e trabalhar em casa até o último fio de gás. Passamos a achar normal apenas passar pela vida, e essa passagem muitas vezes é solitária. Nos fizeram crer que correr é ser digno, que estar sempre ocupado é a única forma de nos tornarmos apresentáveis. As coisas já eram assim em grande parte do mundo ocidental. Dai veio o COVID19, e tudo conseguiu ficar pior. Todos trabalham muito mais, mas ficaram mais pobres. E assim vivemos e, enquanto vivemos, nos acostumamos com as mortes - as mortes físicas e a morte em vida. Um vírus é só um vírus, mas ele pode ser Deus. CoviDeus19, um Deus nada único, já surge prometendo a vinda de seu sucessor: 20, 21... É um deus minúsculo que faz parte de um panteão. Nascido dos pecados humanos - é sempre o clima - ele nos prepara para o apocalipse e o juízo final. Aceitamos sua inexorabilidade. Passamos a achar normal a doença e o que ela traz: distanciamento e desconfiança justificados como "preventivos", o saudosismo do velho normal, rotulado como não mais possível... Contemporizamos o teletrabalho e a tentativa pífia de ensino remoto, e assim não socializamos e não permitimos socializar. Mas, como dizia Zigmunt Bauman, "separados, compramos". E como! Com o medo instaurado, desenvolvemos como loucos os serviços de entrega, baseados em um modelo de negócios no qual a precarização do trabalho é seu principal motor. A pandemia do Covid19 inaugurou um nicho global baseado no medo da morte, remediado com a morte em vida, ao custo de nossa sanidade. Com o padrão de pensamento já instalado nos usuários, fica fácil vender novas doenças, vacinas, máscaras, sistemas de EAD e teletrabalho... Os profissionais de saúde (leia-se principalmente enfermeiras, mas não só), exaustos, vão sendo substituídos por outros, mais baratos. 25-30% dos professores já flertaram com a ideia de mudar de carreira. E assim alguns países abrem suas portas aos profissionais de países mais pobres, dando continuidade à exploração colonial e à implosão das próprias redes de seguridade social internas (quando ainda existem). Com isso, é claro que a renda se concentra ainda mais. Tenham medo! A Varíola dos Macacos vai pegar você, a menos que você faça o que mandarem. Fique em casa e aguarde instruções. Em tempo, eu acredito que há uma pandemia lá fora e tomei todas as vacinas que me deram. Mas acredito também que quem se beneficia de uma dada situação está, quase sempre, muito bem preparado para fazê-lo. Eu já vi muita podridão humana em ação para aceitar sem crítica a ideia de acaso.

9 de maio de 2022

Nu Frontal


 Um corpo é sempre um corpo nu

E é sempre um corpo no espaço vazio

O nu no corpo solto da cidade

A nudez invisível do corpo da vida

O corpo nu transita vestido, finge-se desestruturado para disfarçar o desengonçado.

Trajado em risca de giz que não disfarça a pele ultrajada, ulterior, última e primeira vestimenta. O corpo, para enfrentar a luta de não ser corpo, leva armadura sobre a pele, a casca que nasce a se desmanchar.


Um corpo sadio é um corpo tão corpo quanto um corpo doente. Ambos são quentes por fora, úmidos por dentro e se arrepiam ao frio e se intumecem ao toque.


Um corpo é só um corpo, até não ser mais nada. Qual corpo se diverte mais, o sadio ou o doente? Quanto sofre um corpo sadio até gozar? Quanto goza um corpo plebeu até adoecer?


Encorpar para incorporar? Educorar e aromatizar para exportar: o corpo expulso que se crê expatriado quando sempre foi e será um refugiado, um refugo.


Sempre um corpo no espaço vazio

O nu no corpo solto da cidade


Um corpo invisível no improvável do hoje, no  inexorável do aqui,no imponderável do "até quando"

10 de outubro de 2019

O Mito de Pinóquio

Fonte da imagem: Abertura da série "The Politician" (Netflix): 

Quanto falta para você se tornar um "menino de verdade"? O que precisa fazer? Mudar de sexo? Emagrecer? Passar no vestibular? Ganhar mais? Virar mestre, doutor, pós doc?

A cada passo que dou, ou não dou, vou percebendo que vim pra esse mundo para notar como sou pequeno, e para aceitar minha pequenez. Só que, muitas vezes, o processo de se perceber pequeno, passa pelo de se perceber Pinóquio, o menino de madeira que queria ser um menino de verdade, amado de verdade, com razão e aplausos como seus fiéis avalistas.
Pinóquio quer muito ser de verdade e, assim, de fato pertencer a um mundo que apenas frequenta, um mundo feito para outros e não para si, onde seu corpo de pau é um corpo estranho. Pinóquio vive, contudo, um dilema: ele deve se comportar bem, para que um dia ganhe o merecido prêmio da transformação em humano, mas é tentado pela vida a fazer coisas que lhe dão prazer, afinal é isso que humanos fazem. Humanos vivem uma vida cidadã, uma vida de pertencimentos, uma vida plena. Humanos fazem besteiras, cometem erros grandes. Mas nem todos podem, pois não estão na mesma categoria. Os cidadãos podem. Aos outros, é vendida a ideia de mérito. "Se você se comportar/se esforçar/lutar com mais afinco/não fazer merda, será um de nós".
Em muitos níveis, somos todos Pinóquios. Dificilmente alguém está satisfeito com o nível de humanidade que atingiu. No entanto, algumas portas não se abrem via mérito. por mais que pintemos a pele com marcas e flores, esta sempre delatará que foi feita de um toco de madeira, de um nó de lignina.




Querer Tudo

As pequenas negociatas. Não consigo ceder, não consigo querer menos. Não é que eu seja ambicioso em termos materiais, pelo contrário. Só que quero do meu jeito. O meu jeito. O meu. Eu. Não quero me contentar com menos do que aquilo que imagino justo. Será que, por isso, sou ingrato? É fácil para aqueles que acham que há um ser superior vigiando e guiando seus passos, contentar-se. Não me contento, porque haveria de me contentar? Dar graças por ter pernas e braços e olhos e cérebro? Sim, existem os que nada tem. Não existo se não do meu jeito. Por isso sou tão babaca. E egocêntrico também.

In Vino Veritas

Sou um amante da verdade. Adoro a crudeza de um sorriso escrachado. Amo um descontrole emocional. E um deboche amigo. Essas coisas só são possíveis em ambientes não envenenados pela pretensão. Por isso, odeio a pretensão. E odeio os pretensiosos que pretendem ser a evolução da humanidade mas, por isso mesmo, são exatamente o contrário. São as asas de Ícaro, que por mais alto que o levem, ainda são de cera, e derretem com o calor.
Pois é, mas a pretensão é uma praga. O cara se acha o tal amaral, porque marcou mais pontos que o outro, porque teve mais mulheres, mais carros, mais publicações, mais influência com o regente da orquestra, mais amizade com a rainha do baile, mais bala na agulha com o prefeito da cidade.
Para minimizar essas diferenças entre diferentes poderes e moedas, e para talvez trazer à tona a essência primordial, pura e simples, dos homens e mulheres, criou-se a bebida alcoólica. Extremamente democrática, coloca todos no mesmo nível, por apenas uma noite. Depois, tudo volta ao seu desequilíbrio de casta usual.

25 de agosto de 2012

Recorte

Não se pode ser tudo. Há que se fazer escolhas. Uma alma contida em uma escala pequena de desejos não brilha. Uma alma incontida, desejando incondicionalmente a tudo e a todos, também não brilha. Ha que se fazer recortes. Aparar arestas. Lapidar-se. Uma alma incontida almeja tocar o céu, mas o faz por caminhos demasiadamente terrenos. A flor e o diamante. Há que se enxergar a roupa invisível do rei e, ainda assim, dizer a todos que o traje é belo. Há que se amar o poema, mas martelar o duro metal a fim de dar a ele uma forma que dificilmente será alterada. Alterar a forma, a fôrma, formar uma vida, a cada martelada uma nova forma, a cada martelada uma nova dor. Optar pelo metal bruto ou o metal trabalhado. Se opta-se pelo bruto, admira-se a beleza natural da gema; se opta-se  pela lapidação, a forma natural se vai, para ser transformada em outra beleza. Contenha-se. Castigue-se. Capriche. E lembre-se: tudo vai se perder um dia, a arte é fátua, o fogo extingue-se, a vida nasce morta.

26 de julho de 2012

O anoitecer das suas opções

Respiro fundo e admito: não acertei em todas as minhas escolhas. A questão é que este fato, o não acertar, foi também uma escolha. Com ela convivo. É a partir dela que farei novas escolhas. Acho que o nome disso é "aprender com os erros". Nada como frases feitas, jargões e expressões para simplificar e sintetizar uma gama enormemente variada de ações e sentimentos.
No sonho, mergulho no escuro. Um túnel feito apenas da sensação de ir para frente e para o fundo, sem nenhuma possibilidade de retorno. No sonho não sou humano, sou  como um golfinho, não tenho braços, não tenho nada que me freie, somente a oscilação do corpo que termina com uma chicotada da cauda e me impulsiona. Nada vejo, mas paro a milímetros de uma borda de pedra, a parede que simboliza um limite, um fim. Sem cor, sem cheiro, sem pensamento.
Ontem nasceram-me mãos. Para comemorar, de um peixe que por mim passava extirpei suas entranhas. Minhas novas mãos sangraram. Não senti dor. Não senti calma. Não senti pena. Não senti.

15 de julho de 2012

Link

A casa escura e vazia. A minha presença não enche todo esse espaço, então prefiro apenas o quarto. O silêncio faz com que pensamentos e memórias tornem-se muito mais palpáveis. O som que vem da janela é como uma concha, pode-se ouvir algo do mar ao fundo, e por cima buzinas, freadas, vozes e aviões. Eu tenho um pouco de medo desse barulho, e acabo colocando algo mais barulhento por cima, como uma camada sonora extra. O medo não é do barulho em si, mas sim dos pensamentos que tento abafar. Na arca bíblica, perdida num mundo feito de água, e levando consigo a súplica duplicada do choro de todos os animais, Noé teria se queixado de não ser capaz de ouvir os próprios pensamentos. Sou o meu prórpio Noé, e sou também minha arca. Embora queira acreditar que não sou mundano, percebo que ninguém , de verdade, é terreno. Vivemos para o futuro, estamos aqui hoje em função do passado de outrém, e nunca somos verdadeiramente nós.

Nós, pronome da primeira pessoa do plural, ou nós, o plural de nó. Não somos nó, somos links, hiperlinks. Um nó, dado em uma corda de barco, por exemplo, representa um compromisso estabelecido entre a corda e o mastro, entre o barco e o porto. Um link é apenas uma referência, um indicativo que dá passagem a um outro elemento. O link representa o elemento, mas não assume características daquilo que é representante. É uma referência sem compromisso, sem garantias, se o site linkado não estiver mais ali, paciência. Como já disse, nunca somos nós. Somos, no máximo, links.

Trabalhamos para o futuro, e nos narcotizamos no presente para que possamos tolerar chegar um dia ao inatingível futuro. Quando eu tiver barba, quando fizer dezoito, onde estarei daqui a 5 anos, os fins sempre justificando os meios, a felicidade sempre sendo postergada. Deixamos para o meio apenas o vazio. O plasma a que chamamos "Ar" a nos rodear, como um grande espírito nos envolvendo, claramente sussurrando ao pé de nossos ouvidos "és ilha". Encontramo-nos cercados de um escuro que rouba a luz, em ambientes que parecem impedir a propagação, por mais que se troque a lâmpada, mas tudo continua opaco.

Algum dia, não muito distante, entrarei no mar de sons, não mais o ouvirei de dentro da concha, mas farei parte das buzinas, freadas, vozes e barulhos de avião.Talvez leve comigo um fone de ouvido. Mas, por hora, tenho muito o que pensar e lembrar. E costurar.

12 de julho de 2012

Aqui Jaz o Amor

"Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza." (Álvaro de Campos - het. Fernando Pessoa)

Aqui jaz o amor. Ele ficou feio, pois a vida ficou feia. O amor de amar sentir, de amar estar perto, de amar admirar o outro, acabou. Ele tem força para renascer? Hoje, duvido. Hoje eu sou luto, e não luta. Hoje eu não sou nada além de amargo, ácido, calcinante. Hoje não sou nada além de desajustado, descompassado, inadequado, errante, errado. A minha tese não importa. O meu tesão não tem mais tempo. O meu tesão não tem mais eu. Eu era referenciado por ela. O que gostar, o que vestir, como ser bom, como ser legal. Admiração cede lugar à Admoestação. Lambo minhas feridas, mas agora fui posto num lugar onde não poderei, não mais, causar ferimentos. A minha acidez vai me dissolver e, juntos, eu e minha bile venenosa e ácida, escorreremos pelo ralo, deixando o mundo aos belos de coração. "Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo."

Nuclear

Quando um núcleo racha, podemos suspeitar de algumas coisas. a primeira, é que não se tratava de um núcleo, ou seja, havia divisibilidade; a segunda, consequência da primeira, é que este núcleo só se manteve unido porque havia a querência, as partes se atraíam de tal modo que se identificavam como um núcleo. Núcleo duro, núcleo sólido; a terceira hipótese seria pensar que forças fracas uniam esse núcleo, ou melhor, fortes forças advindas da fraqueza de cada parte. Torço para que a terceira ideia seja nula. E torço para que a força forte seja uma prova de que as partes podem se unir para formar mais do que uma fornalha.