19 de junho de 2011

A Nova Blogueira de Damasco


Aisha acordou naque dia pensando em Amina, e inconformada como fora enganada. Um norte-americano idiota se passando por uma síria - uma síria gay. Amina Arraf era uma guerreira e um símbolo entre os jovens. Escrevia em uma linguagem inconfundível que atraia multidões. O governo Sírio temia que o tal Tom MacMaster fosse apenas um dos muitos braços americanos atuando com a desinformação por aqui. Pode até ser mania de perseguição, mas quem, ao menos nesse caso, poderia dizer que eles estavam errados em pensar assim? O fato é que esse MacMaster colocou em risco blogs e bloggers, gays e héteros, especialmente em tempos de "primavera" Síria.
Aisha Levantou-se, vestiu o uniforme e foi à escola. No caminho, pensava em como seria se tivesse um blog. Mas não se achava uma escritora competente o suficiente para ser como tal "Garota Gay de Damasco". E também não achava sua vida pessoal assim tão interessante quanto a de uma lésbica ativista. Afinal, como muitas de suas amigas, sentia atração por rapazes que se revelavam bastante tradicionais, e sua única atividade recente era estudar mais e mais para conseguir ir para uma boa universidade. Amina Arraf, falsa ou não, foi um furacão que chacoalhou as certezas da juventude Síria. As fotos de "Amina" agradavam e muito a homens e mulheres. Jelena Lecic, a croata que emprestou o rosto, contra a vontade, a Amina Arraf, tem nos olhos o brilho do sofrimento e a altivez desafiadora do estereótipo da mulher árabe poderosa. Os árabes em geral têm uma atração pela face altiva e contestadora, a erotização do mártir, ou da mártir.
A um quarteirão da escola, Aisha teve seus pensamentos interrompidos por sua amiga Sâmia, que precisava de seus conselhos. Sâmia havia se casado cedo com Michel, por conta de uma gravidez indesejada. Ela quis continuar os estudos, mas Michel concordou somente após muitas brigas. Agora, Sâmia achava que ele estava tendo algum caso, pois seu interesse por ela, ou mesmo pelo filho, era quase nenhum. Aisha sabia que essa história não tinha nada de original, mas Sâmia era sua amiga, e não conseguia ver o que ocorria com a sua vida como algo que propiciará sua liberdade. Afinal, em qualquer sociedade a mulher que se casa e é abandonada ganha uma liberdade inegável, inimaginável em quaisquer outras condições. Mas Sâmia só conseguia enxergar nessa situação o fracasso.
Aisha ficou com a amiga o quanto pode, e após as aulas voltou para casa. Pensou em Amina, e em mulheres árabes poderosas e revolucionárias; pensou em Sâmia, e nela mesma. Pensou também no famoso livro "As Mil e uma Noites" e na sua protagonista principal. Sherazad e suas histórias para animar e distrair o rei traído (que queria apenas uma noite de prazer com ela, para depois decapitá-la), daria uma blogueira perfeita.
A Síria de Aisha não é perfeita. Sentir-se livre para expressar sua opinião é o que ela sempre quis, e do que sempre teve medo. Havia o serviço de informação e aqueles que estavam a serviço deste. Algumas coisas haviam melhorado recentemente como a oferta de emprego. Mas outras pioraram, como a corrupção institucionalizada. Nada diferente do que se lê das democráticas instituições ocidentais. A Síria de Aisha não é perfeita, mas afinal, que nação é perfeita? Aisha pensava em migrar... como fizeram diversos parentes e conhecidos seus, nas últimas 4 décadas ou mesmo antes. Ou como talvez tivesse feito o próprio presidente do país, formado em medicina no reino unido, que só ocupa hoje a presidência por um acidente fatal com o seu irmão mais velho. Mas migrar é pouco, é ineficaz. Os árabes, e os Sírios em especial, têm um amor à pátria acima da média. Muitas vezes acima do amor próprio. Faz parte da cultura síria amar a Síria. Mas talvez tenha chegado a hora de amá-la de modo diferente.
Os pensamentos de Aisha a dominaram por completo. À noite, com a ajuda do irmão, estava no ar "O Blog da Verdadeira Garota de Damasco". E Aisha sentiu-se mais viva.

13 de junho de 2011

Contexto


Zé e Pedro eram muito muito amigos. Ana e Paula eram suas respectivas companheiras, e também eram muito amigas. Zé e Pedro trabalhavam juntos, e moravam perto. Um dia, Zé e Ana terminaram. Ana não queria ver Zé de jeito nenhum. Paula, solidária à amiga, também não queria ver o Zé, e também não queria que Pedro visse o Zé.
No trabalho, o Zé se aproximava de Pedro para falar do que estava sentindo em relação à separação, mas este correspondia muito pouco, como se estivesse fazendo algo errado.
Zé pediu então se poderia jantar na casa de Pedro, pois queria falar com a Paula, a quem muito considerava. Pedro contou isso à Paula, que relutou, fez bico, disse que não queria, mas no fundo estava com pena do Zé, e acabou cedendo.
No dia combinado, Zé chorava as pitangas para o Pedro, cada um abraçado ao seu copo de uísque, enquanto Paula pegava a sobremesa. Nisso, a campainha tocou. Era Ana, que logo viu o Zé e desatou a chorar e querer ir embora, mas foi impedida pela Paula. Naquele dia, Zé e Ana conversaram e puseram pingos nos "is", enquanto Paula e Pedro saíam para tomar café. Paula tremia. Pedro, calado, pegou em sua mão. Paula retirou a mão e conduziu-a ao rosto. E contou, pela primeira vez na vida a alguém, o que realmente sentia: Não sabia mais quem era, as coisas mudaram, que ela torcia para que a Ana terminasse com o Zé não apenas por achar que este não a merecia, mas sim porque queria a Ana, que a queria para si, que a amava e desejava incontrolavelmente. Pedro, calmo, disse que já desconfiava, e que não tinha tido coragem de perguntar, mas já havia flagrado os olhares e o excesso de zelo dela para com a amiga. "Ainda não acabou", disse Paula. E contou que também havia saído algumas vezes com o Zé, que ele sempre a assediava, e que não sabia porque havia feito aquilo, que não reconhecia a si própria, que não era ela mesma. Pedro sentiu dois duros golpes, fora traído de uma só vez pelo amigo e pela esposa. Em seu orgulho de macho, não se sentiu traído pelo amor confesso da esposa a outra mulher, mas sim aos rápidos affairs entre seu amigo homem e sua esposa. Verteu lágrimas caladas, e percebeu um fim se aproximando, um ponto onde ele pediria para descer. Outras conversas rolaram, uma briga feia entre Pedro e Zé, a separação da Paula, e as conversas com Ana, com quem nunca tinha falado tanto quanto naquelas últimas semanas. Ana chegou a ter um caso com Paula, classificando o sexo como "surpreendente", mas sem chance de um relacionamento sério, pelo contexto, mais do que pela questão de serem do mesmo sexo. Pedro achava o mesmo em relação ao sexo com Paula, mas somente no começo do relacionamento deles. Pedro tinha uma teoria: A mulher solteira se esforça mais, na sedução, no sexo, na dedicação e, sem perceber ou percebendo, engana seu homem, fazendo ele acreditar que se casou com alguém que na realidade não existe.
Pedro e Ana Casaram-se em 2 de abril, em uma cerimônia discreta, talvez porque Ana tenha feito Pedro acreditar que com ela a história seria outra...

9 de junho de 2011

Só reclama quem se importa


Um certo mestre me disse uma vez que quem reclama, na verdade é porque se importa. Quem não reclama não está nem ai. Essa é uma lição que, embora conscientemente me pareça óbvia, na prática sei que ainda não aprendi muito bem. Mas funciona. Amigos de verdade são aqueles que metem o dedo na sua cara para mostrar a você o que de fato você tem que ouvir. Colegas de escritório, de escola, de festinhas, etc., apenas esperam seu tombo para rir e dizer "ah, eu sabia". Às vezes nem isso. Antes, são indiferentes, e simplesmente se calam, pois não têm interesse em seu sucesso ou fracasso. Você, para eles, faz parte da paisagem, mas não do cenário principal.
O recado aqui, para mim e para muitos, é bastante simples: prestemos atenção às reclamações dos outros, e reclamemos daqueles com quem nos importamos. Sem feedback, nada feito.

2 de junho de 2011

A poção da felicidade


Ele sempre sorria. E sempre tinha ideias brilhantes (ao menos ele mesmo julgava-as brilhantes) e que iluminavam a vida. Porém, acordou triste, em um dia meio triste, e foi a um Xamã, que lhe deu uma poção. Deixou a tristeza de lado, mas ao invés de voltar a ser alegre, ficou serio. Foi trabalhar num lugar monótono, onde seria alguém na vida. Subiu na empresa, teve os carros de todos os anos e o Home Theater dos sonhos, no apartamento dos sonhos, e fez viagens de sonhos. Mas era serio, nada mais era tão alegre quanto antes. Não era triste, mas era serio.
Um dia, ele foi a um parque de diversões, procurando a alegria perdida, e entrou na casa dos espelhos, um local que sempre gostou. E os espelhos o refletiram, mais magro, mais alto, mais baixo, mais cheio, torto assim, torto assado; viu-se refletido infinitas vezes. Saiu da casa dos espelhos sentindo-se estranho. Parecia que conhecia todo mundo. Parecia que conhecia cada um dos estranhos com quem esbarrava. Eram todos muito parecidos com ele, como se tivessem saido junto com ele da casa dos espelhos. Todos vestiam terno quase da mesma cor, e óculos de modelos semelhantes, e dirigiam carros parecidos, e o perseguiam em todos os lugares, e moravam no mesmo bairro, alguns até no mesmo prédio. "Que loucura é essa?" pensou, sem saber mais quem imitava quem. Naquela noite, sonhou que outro ele dormia com sua mulher, e brincava com seus filhos, e visitava sua mãe. Ele via o mundo, o seu mundo, mas não fazia parte dele, era só um espectador, em um edificio de vidro, e em todos os andares, a mesma cena se repetia: ele sentado, olhando sua vida em uma tv de lcd. Acordou assustado. E resolveu ir brincar e ser criativo e alegre de novo. Mas não sabia mais como. Perdera a intimidade com a alegria. Teria que começar de novo.