6 de maio de 2010

Esvaziar-se


Começou a vender, a doar e a livrar-se das coisas que não tinham mais utilidade, as tralhas de uma vida que não caberiam nunca no novo apartamento - aliás, nem cabiam no velho. O DVD do Poder do Mito. Uma coleção de dvds do Woody Allan. Aliás, o certo mesmo era mandar embora todos os dvds, pois agora assistia filmes baixados da internet do computador diretamente para a tv, dvd era coisa do século passado. A ergométrica-cabide já fora tarde. As bicicletas idem, usadas nem 5 vezes cada uma. As toneladas de celulares quase bons, substituídos sempre por outros celulares mais novos e também quase bons. Os livros da coleção do verão passado. Os livros de faculdade, os diplomas da antiga empresa, os manuais de procedimentos da qualidade total que nunca mais seriam usados, pois a qualidade total agora era integrada com a sustentabilidade e com as demais regras do capitalismo politicamente correto, eco-logicamente, embora muitos ainda achem que é pra inglês ver, e americano rejeitar, polidamente, em nome da liberdade.
Aquele cata-cata estava virando uma terapia da vida passada, que se repetia diante dos seus olhos, puxando memórias, provocando saudades ou gratidão (ainda bem que isso é passado!!!), dependendo do objeto e de seu contexto.
Algumas coisas eram inexplicáveis, como aquela calculadora com mais de 15 anos que ainda funcionava; duas caixas de sapato lotadas de disquetes de 1,44'' (cujo conteúdo caberia hoje em um pen drive qualquer, ou cartão de memória de celular dos velhos); e a impressionante coleção de carregadores, fios, cabos de rede, cabos de telefone, cabos de força, fones de ouvido, microfones, cabos usb, cabos de impressora, peças sobressalentes de uma cultura de sobressalescência, se é que a palavra existe. E, no paraíso dos anos 90, eis que surge um tupperware lotado de fitas cassete, gravações de rádio, playlists da infância, pequenas máquinas registradoras do nosso empenho manual e pessoal, que enrolavam e eram desenroladas pacientemente, com uma velha caneta bic e muito cuidado.
Ao esvaziar as prateleiras, imaginava-se fazendo uma limpeza mental. Afinal, ele era aquilo que consumiu, alimentar e culturalmente, durante sua vida até aquele momento. homo consummens, o sucessor do homo sapiens, não faz, não sabe fazer, compra feito, certo? Então, por que sentia-se mal? Por que o saudosismo? Talvez, porque tivesse cansado de mudar de formato, de aprender de novo o novo, de concorrer pelo grande prêmio do saber que nunca chegava. Nada de Star Trek, nada de viagens pacíficas de pesquisa que lutavam pela autodefesa, o mundo era muito mais Star Wars, mundos e mais mundos sempre em guerra, a sabedoria Jedi sempre usada para a guerra, o marketing de guerra Jedi, camuflado de coisas simples e rústicas, como a padaria com fachada de madeira e atendentes vestidas como mucamas coloniais, ou o boteco novo com cara de boteco dos anos 40, azulejos antigos, balcões e penduricalhos, que metem a faca pelo 'ambiente' e 'experiência' proporcionados... o simples caro que se torna simulacro mais verdadeiro que o boteco do centro que traz o bêbado pobre e o torresmo com pelo, ao lado do ovo azul.
Pensando nisso tudo, ele parou de escanear as fotos velhas. Decidiu que, ao menos, sua famíla e amigos não seriam jogados fora, envelheceriam normalmente, em papel, sem photoshop.

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